terça-feira, 24 de maio de 2011

Ode ao desencanto

Trabalhamos em pleno arranha-céu... Espaço de conforto onde conseguimos ficar distante como o astro rei, que vive no Templo dos Deuses, e se faz presente em nosso dia-a-dia quando seus raios ardentes douram nossa frágil pele burguesa. Nós, aqui de cima, ficamos tão próximos que pensamos ser importantes como ele.

Trabalhamos em pleno arranha-céu... Abrindo as janelas nos dias quentes e escuros sem saber o que se passa bem abaixo de nós. Aquelas pessoas tão pequenas ao longe... Quem são? Aonde vão? A vontade de voar pelas escadas até a rua é nossa única chance de conhecer outras realidades. Que saia a preguiça, e venha a compaixão!

Menos um andar, dois andares, três andares... Quando estamos ansiosos os segundos são horas intermináveis de apreensão e angústia profunda. Degraus e mais degraus são pedras no meio do caminho que distorcem minhas retinas tão fatigadas pelo temor do desconhecido que está por vir. Coragem! Desce do ar-condicionado ser humano despreparado, mergulha na realidade infame de seus ilustres semelhantes desfavorecidos e invisíveis a ti.

A claridade proporcionada pela abertura porta automática logo se transforma numa penumbra áspera e aterradora. O que um dia fora pessoas, não passa de um vislumbre de dignidade e esperança. Figuras disformes caminhando para lá e para cá à espera da contínua rotina de não fazer nada; onde só resta implorar aos céus por um destino melhor, um renascimento, um perdão pelos seus pecados. Visão amarga, que faz chorar o coração. Existe na nossa frente um espelho que só reflete trapos e horror.

O entardecer na cidade traz o ar pesado de um dia inteiro de poluição. O firmamento azul anil ficou no passado e agora foi banhado por um vermelho intenso que se mistura ao cheiro de ferro do engarrafamento. Todos os dias caminhamos no ensurdecedor silêncio das almas que vagueiam por nós despercebidas, mesmo tentando ser notadas no chão das grandes avenidas aos gritos por esmolas ou no choro de uma mãe que vê suas crias sofrendo na inanição do descaso que os cerca.

Chega a cavalaria com seu comandante gritando uma sinfonia de agonia: “Tranquem, arrastem, expulsem. Fazei-os fugir!”. E respiram aliviados aqueles que agora se sentem seguros sem as formas espectrais obstruindo seu conto de fadas amaldiçoado pela doce e nebulosa ignorância. Estes pobres, viciados e mortos de fome... Quem são? Aonde vão? Guerreiros sem choro. São bravos, são fortes, são retirantes do norte; meus cantos de sorte, guerreiros, por favor, não desistam.


||| Paródia de "O navio negreiro" |||