quarta-feira, 11 de junho de 2014

Nobreza banguela


No alvorecer do dia 12 de junho de 2014 as verdejantes selvas brasileiras estarão no alto do Olimpo chorando ao lembrar-se da desgraça de sua desnecessária degola. Na terra dos mortais, a mulata terá uma bala de ‘três oitão’ transfixada por suas pomposas nádegas, enquanto no meio do ‘sambão’ da abertura da Copa crianças são usadas para voar como aviões.

Nada que não se resolva com uma maquiagem de alegria com sorrisos desdentados e um pandeiro girando no alto do dedo médio. Não se preocupe, caro leitor, pois em pouco mais de um mês estaremos finalmente inseridos no primeiro mundo. Eu serei o lorde da Vila Ré, e me juntarei à marquesa do Capão Redondo e ao Duque do Tremembé para assistir ao fantasma do legado provido por nossos bolsos.

Quando saio de meu palacete, vez ou outra viajo para o local onde um primo rico construiu uma moradia de mais de um bilhão de reais, mas não entendo o porquê de a favela da plebe, que fica exatamente na frente, continuar lá; mais imponente que o próprio Castelo de Itaquera. Terá me faltado educação ou os reis do dia 12 de junho são míopes?

“Nada disso me importa”. “Isso é uma vergonha”. “Agora nossa vida melhorará”. “Só estão fazendo isso para me roubar”. Acho que estou um pouco bipolar... Eu, o brasileiro, estou numa bipolaridade social, envolto a um redemoinho de mentiras no momento em que vivo a verdadeira realidade.

Mas agora é hora de respirar fundo esse ar cheio de poluição e agradecer a São Blatter, que estais na Suíça, pela graça concedida ao meu nobilíssimo povo. Minha única preocupação é se faltar um pivô na seleção. Na minha boca, ok.

Para os cavaleiros do apocalipse fica o meu beijinho no ombro. Vocês falam das desgraças como se vacas voassem, e se esquecem que por aqui, atualmente, só voam vasos sanitários.

Atenciosamente,
Nobre banguela


*** Crônica produzida para o curso de Jornalismo Cultural do Senac.

Atemporalidade brasillis


Pés maltrapilhos que se direcionam da aridez até um oásis de florestas de pedra em busca da graça almejada, e enfrentam, ao final de sua jornada, a dificuldade de entender um mundo culturalmente próximo, mas que a distância geográfica moldou como se a própria mão de Darwin estivesse ali para submeter aqueles menos adaptados.

Com exceção ao diálogo entre os personagens, típico de épocas já passadas, e à hoje pouco usual moda de usar ternos e gravatas fora dos casamentos, o filme ‘O pagador de promessas’ (1962) consegue exprimir muito do que é a sociedade brasileira do século XXI, com todas as suas superstições, problemas e soluções efêmeras.

Contudo, antes de abordar as peculiaridades do ‘Brasil de sempre’, vale a menção ao diretor Anselmo Duarte; visto que ele conseguiu produzir o filme de uma hora e meia quase inteiramente em uma escadaria de igreja, sem precisar de imagens coloridas para prender a atenção do expectador. O preto e o branco e os poucos recursos de câmera deixam os olhos mais voltados para o enredo e às emoções dos personagens.

Pobre Zé do Burro. Um Zé sem muitas perspectivas que adentrou no mundo de outros Zés que não aceitavam sua preferência por ser apenas o que ele gostava de ser: um simples Zé que direcionava sua vida por suas convicções, não por ideologias.

Tal como vemos hoje. Extrema esquerda: “leva um presidiário para sua casa, então...”. Esquerda: “Como é discutir isso comendo caviar na sua cobertura?”. Direita: “Você paga seus impostos para a melhoria de sua cidade!”. Extrema direita: “Se você pensa assim, por que não voltar para a ditadura de uma vez?”. Centro: “Sem opinião!”. Não basta pensar aquilo que deseja pensar, tem que estar sempre de mãos dadas, caminhando e cantando, com uma causa maior.

O filme, que há dois anos completou suas bodas de ouro, se passa na Bahia e mostra muito bem a amálgama entre as culturas religiosas dos povos brasileiros. Na trama, Zé do Burro faz uma promessa num terreiro de candomblé e tenta pagá-la numa igreja católica. Obviamente isso não é bem visto pelo padre-general da paróquia que, em pleno Pelourinho, vira as costas para a cultura africana; dos negros; dos brasileiros.

Perante a negativa do padre-general, a história do simples agricultor que percorreu sete léguas levando uma cruz de madeira nas costas para cumprir uma promessa pela cura de um burro viaja até os ouvidos sempre atentos de uma redação de jornal. Um pretendente a mártir estava ganhando forma nas escadarias da igreja de Santa Bárbara.

Nesse momento do filme é um pouco inevitável pensar em alguns casos do nosso jornalismo, em que, muitas vezes, a maior bandeira é a amplificação do fato real. Sem se importar muito com a apuração para se chegar à veracidade dos fatos, vide o que aprendemos na ‘Escola Base’ e o que ingerimos com o ‘Boimate’.

E nesse meio tempo, quando todos os olhos da polícia e outras autoridades estão voltados para a punição dos possíveis defloradores da moral apontados pela imprensa, pessoas são arrastadas para dentro de covis onde o mundo parece melhor do que aquele em que elas enfrentam todos os dias quando o sol nasce e são obrigadas levantar os olhos perante a sua realidade.
Uma sociedade de poucos com muito e muitos com pouco sempre gerará desvios de moral, mesmo que sejam para conseguir apenas um átimo da verdadeira realidade que tal infração traga. Um relógio roubado nunca tornará um ladrão residente de um bairro nobre, assim como uma cerca elétrica não impede arrombamentos.

E em meio ao caos de depravações, criam-se mártires para morrer pela causa de outros. No momento em que Zé do Burro é morto, e pela primeira vez na trama é filmado de cima para baixo, pois somente naquele momento ele havia de fato se tornado uma pessoa importante, impossível não se lembrar de Amarildo, DG, Da Leste.

Criminosos de fato ou injustiçados nunca saberemos. São apenas alguns Zés que tiveram o azar de cair em dos atemporais problemas de nossa sociedade.


*** Artigo produzido para o curdo de Jornalismo Cultural do Senac.