sábado, 12 de abril de 2014

Do legume à Portugal


A artrite já não permite que os dedos que outrora ceivavam o que a terra disponibilizasse para comer durante o ano todo cortem com destreza os legumes para um almoço simples, porém farto, para si própria e para a filha num almoço casual em plena terça-feira. Já sabendo do conteúdo da conversa, o olhar se perde num infinito longínquo de lembranças a cada pedaço de cenoura que se choca com um simples vasilhame de plástico em cima da pia.

Uma ilha sem muitos recursos, perdida no Atlântico, não proporciona oportunidades, para que pessoas enriqueçam por seu trabalho e força de vontade. Na Ilha da Madeira, é mais provável que a terra absorva o ser humano do que o inverso. “Nasci e morei lá até os 40 anos, mas nunca mais voltei e não tenho a mínima vontade de voltar. Você voltaria para onde a única lembrança é de sofrimento e fome?”.
Maria de Freitas Caetano, 92 anos, já passou mais de metade de sua vida morando no Brasil, mais precisamente na zona leste de São Paulo. Contudo, mesmo com toda a ojeriza de lembranças de sua terra natal, ainda não perdeu o caraterístico sotaque português da Ilha da Madeira. Segundo ela, um jeito menos anasalado e complicado de se falar, que provavelmente é uma mistura do sotaque português de Portugal com o de judeus e marroquinos que serviram como escravos durante o povoamento da ilha.

Mais antiga que o descobrimento do Brasil, a colonização da Ilha da Madeira teve início ainda, no século XIV, para ser uma colônia de exploração e, principalmente, para desafogar as prisões de Portugal. “As pessoas do continente nos chamavam de carrascos, pelos nossos antepassados. Eu já era estrangeira na minha terra e vim ser estrangeira também no Brasil”, relata Maria com bom humor.
De mudança para o outro lado do Atlântico com o marido e quatro filhos pequenos, com as passagens ainda em débito com vizinhos, Maria vislumbrou um futuro melhor longe da terra onde nascera. “Tinha familiares no Brasil. Eles diziam que trabalhavam muito como lá, mas que pelo menos aqui se ganhava dinheiro para sobreviver sem fome”.

Maria viveu em um cortiço e vendia bordados, enquanto o marido trabalhava em uma fábrica de colchões da Probel. Suas irmãs conseguiram se estabelecer e compraram terras no interior do estado de São Paulo, porém Maria não teve a mesma oportunidade e recorreu à cidade grande para tentar realizar seu projeto de uma vida melhor.
Hoje, a senhora portuguesa gasta seu tempo bordando por hobbie e não tem as preocupações financeiras de antigamente. “Consegui estudar todos os meus filhos e essa foi minha sorte. Gasto quase mil reais com medicamentos por mês e, graças a Deus, não tenho que me preocupar com isso”.

Nesse mesmo momento, sua filha, que se chama Alcinda, lança-lhe um olhar ressabiado e dá um risada irônica antes de soltar um leve puxão de orelha na idosa: “Só porque a senhora não paga nada, não quer dizer que esteja tudo bem. Olha quanto sal na comida. Diminui que a conta dos remédios também caem”. Maria se deu o direito de fingir que não escutou essa argumentação.
Maria pode ser considerada o estereótipo da senhorinha bonachona. A qualquer momento, os olhos já cercados por rugas lançam olhares de complacência acompanhados de um sorriso e sempre com as mesmas palavras iniciando suas frases: “oh, meu filho...” ou “oh, meu filhi...”, se formos levar ao pé da letra o sotaque madeirense.

O almoço acabou e Maria se levanta com dificuldade para se dirigir até a sala de sua casa para cochilar um pouco. A idade avançada já está pesando sobre suas pernas, e a silhueta espaça contribui com a dificuldade de respirar num percurso de apenas dez metros que ilustra a frase dita por sua filha há pouco mais de 30 minutos.

“Acho que minha pressão está um pouco baixa”, diz Maria a sua filha, ao se sentar em sua poltrona. Alcinda joga os olhos para cima, relaxa os braços em sinal de desistência e sai para trabalhar sem falar “tchau”. Maria ganhou a batalha pelo direito do sal.
Antes de tirar seu merecido cochilo após o almoço, Maria faz uma oração em voz baixa de maneira demorada. “Estou agradecendo tudo que eu tenho e pedindo paz para aqueles que já se foram”. Maria perdeu o marido há pouco mais de dois anos e, durante sua vida, viu seis de seus filhos morrerem em decorrência da falta de recursos tanto na Ilha da Madeira quanto no Brasil. “Passei por muitas tristezas, mas não vai demorar pra eu ir encontrar o meu velho”.

Para os amigos que a conhecem desde os velhos tempos, Maria sempre disse que não ia durar muito, pois sempre foi muito doente. Mas já chegou aos 92 anos, e os cem estão logo ali.

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